Um dos meus lugares preferidos para descobertas são as estantes de livros infantis: entre clássicos e obras para diversão e aprendizado, existem grandes tesouros. Livros assinados por grandes escritores e pensadores da humanidade que dedicaram algumas páginas aos pequenos sobre temas relevantes na formação do ser humano.
Foi assim que encontrei, há alguns dias, uma obra que me surpreendeu duplamente: nas prateleiras da pequena (e encantadora) loja de brinquedos Maritaca, no bairro do Sumaré, em São Paulo, havia uma antiga narrativa da tradição oral italiana, mais especificamente da cidade de Ales, na Sardenha, terra do filósofo Antonio Gramsci (1891-1937). A obra estava assinada por ele.
Obra de Gramsci e Domènech é um achado sobre narrativa popular oral do interior da Sardenha
A publicação de “O Rato e a Montanha” (editora Boitatá) foi possível graças à uma carta de Gramsci à sua esposa Giulia. Em 1931, quando estava preso, ele pediu à ela que contasse aos filhos do casal, Delio e Giuliano, uma história de sua cidade resumida por ele ali. É o conto sobre um rato que arrependido por ter roubado o leite de um menino, decide buscar mais com a cabra. Mas o que parecia uma tarefa simples, torna-se uma longa jornada, que envolverá todo um povoado em um esforço coletivo para reverter os estragos da guerra e da exploração do meio ambiente e dos bens comuns.
Apesar da profundidade do tema, “O Rato e a Montanha” é recomendado para leitores iniciantes
Gramsci, um dos maiores pensadores do século 20, também desejava saber a reação dos meninos perante a história. Não há registros se ela foi repassada aos filhos do casal, porém, a narrativa oral de um povoado localizado em uma ilha no mar Mediterrâneo ultrapassou fronteiras físicas e temporais e hoje está ao alcance de inúmeras crianças – e de adultos que amam vasculhar os livros infantis.
Publicado inicialmente em inglês, “The Journey”, de Francesca Sanna, foi traduzido para diversos idiomas e venceu o prêmio Sociedade dos Ilustradores em 2016
Curioso é que na mesma estante de livros da Maritaca, há uma publicação de uma autora italiana que complementa a narrativa oral do povoado do célebre pensador: “A Viagem” (V&R editoras). A obra é de Francesca Sanna, também natural da Sardenha e nascida um século após Gramsci. A ilustradora se inspirou em relatos reais de pessoas que, devido a guerras, foram forçadas a deixar suas terras natais. A história é narrada a partir do olhar de uma criança refugiada, que sem entender os motivos de tantos percalços, almeja ser como os pássaros, que podem cruzar quaisquer fronteiras e encontrar um lugar seguro para morar.
Seja na Itália de Gramsci, que viveu o período de Mussolini (1925-1943), ou na atual Itália de Francesca, porta de entrada na Europa para tantos refugiados, os 100 anos que separam os dois autores não foram suficientes para sanar grandes crises da humanidade. Na vida real, o rato continua a tomar o leite do menino, mas sem se arrepender. Sem comida e com sua cidade destruída pela guerra, o menino é obrigado a cruzar fronteiras para poder viver. No entanto, ninguém contou a ele que existem cabras em outras terras que não querem dividir o seu leite com estranhos. E o menino continua a chorar.
Obra de Francesca Sanna propõe reflexões nos jovens leitores sobre a crise humanitária dos refugiados
“O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e nesse claro-escuro irrompem os monstros”, escreveu o filósofo, que via na educação e na escola para todos um caminho para as transformações, através do surgimento de uma nova mentalidade.
Carta de Antonio Gramsci à Giulia publicada no livro “O Rato e a Montanha”
Imagens: Bruna Galvão
BRUNA GALVÃO é jornalista especializada em Itália / bruna.galvao@agenciacerne.com.br