Refletir sobre italianidade me fez mais atenta, me obrigou a vasculhar gavetas e armários à procura de documentos e memórias, telefonar para primos esquecidos, ler os nomes das placas nas ruas e nas praças. Me fez ir para o centro da cidade, para o Bixiga, para a Mooca, para a Bela Vista, procurar o lugar mais alto da cidade para ver as luzes da arquitetura-herança; feliz por descansar os olhos na beleza e, ao menos por um minuto, deixar de ver ”os humilhados dos parques de sempre com os seus jornais”.
Foi então, nessas andanças em busca de italianidade, que me deparei com três breves histórias:
Primeira história
Lá pelos 23, à época do meu segundo ou terceiro emprego, abri uma conta em um grande Banco. Salário pouco, ia à agência – enorme, movimentadíssima – onde o atendimento era péssimo, as filas intermináveis e os caixas eletrônicos, ainda uma raridade. Eu preferia o atendimento olho no olho, e sempre me punha a enfrentar as filas. Então, quando chegava a minha vez, encostava no balcão, apresentava o RG, o cartão e dizia: “vou sacar tudo” – e claro! O “tudo” era quase nada…
Era sempre assim: o rapazinho do guichê (outras vezes a mocinha) se detinha a examinar por tempo demais a foto e a minha assinatura na carteira de identidade. Só então, curioso e atrevido (ou atrevida) disparava a pergunta, enquanto movia os olhos de cima para baixo (e de baixo para cima); numa ousadia impertinente:
“Você é parente do Luiz Schiavon? ”.
Eu sorria, desconversava e rebatia com outra pergunta que eu mesma respondia:
“O tecladista? Sou não. ”
A decepção na voz transparecia – fosse o atendente um mocinho ou uma mocinha – e, invariavelmente era seguida de… “Que pena… Seria tão chique…”.
Ah, não sei se você sabe, mas Luiz Schiavon foi o fundador de uma famosa banda de rock dos anos 80 – a RPM, ou Revoluções por Minuto.
Bem, o fato é que, todo mês era assim e aos 23, em algum momento, juro que pensei: “até que seria bom eu ter um parente-celebridade e me livrar desta fila…”
Schiavon é um sobrenome que tem lá a sua relevância na Itália, na região do Vêneto. Lá tem Morgano, Província de Treviso e terra do meu avô vêneto, e, no único cemitério desta pequeniníssima cidade, tem tanto Schiavon, que chega a dar até arrepios! Aqui em São Paulo, o sobrenome Schiavon não é tão comum de encontrar (talvez por estar espalhado pela imensidão desta cidade), e acho que é por isso que as pessoas têm tanta dificuldade para pronunciá-lo e escrevê-lo, embora sempre o achem “bonito e diferente” – independentemente de o associarem ao célebre tecladista ou não.
Mas, voltemos à história: o fato é que, no guichê do Banco, lá pelos idos dos anos 80, 90, meu sobrenome ocupava lugar de honra, tido como “charmoso e chique” (mal sabem eles que “schiavon” deriva de “schiavone” que, por sua vez, significa “grande escravo” em italiano). Coisa de paulistano e brasileiro, eternos iludidos pelo que é “estrangeiro” – ainda mais se famoso.
Só que teve uma vez, então, que entrei no jogo… Foi só no final do atendimento (quando eu já guardava o cartão e a identidade) que o garoto do guichê (que não me pareceu, definitivamente, ser o mesmo das vezes anteriores) me perguntou – naquela feita, bem mais certeiro na genealogia:
“Você é prima do Luiz Schiavon?”
Titubeei um pouco como de costume, olhei para os lados e respondi baixinho, pouco antes de sair da fila: “Simmm!
Nem olhei para trás, feliz pelo Banco estar lotado, feliz pela improbabilidade de reencontrar o mesmo garoto do guichê em outra ocasião. Teria sido terrível ter que sustentar a mentira…
Segunda história
Se a primeira história não é mentira, esta não é ficção:
Encontrei outra eu. Nome e sobrenome. Não se trata de um “homônimo”, já vou avisando, pois se assim o fosse, na carteira de identidade deveriam constar outras coincidências: data de nascimento iguais (dia e ano) e mesmo nome de pai e mãe. Trata-se de alguém que tem o mesmo nome e sobrenome que o meu; neste caso, uma “xará”!
A palavra “xará” vem do tupi-guarani e significa “aquele que tem meu nome”. E não é que temos mesmo? Não é coisa pouca… Somos duas Schiavons, mas também somos duas Helenices!
Eu encontrei a Helenice – a outra – no Instagram. É quatro anos mais nova, mora em Goiânia e é Palmeirense! Há 15 anos começou a correr e hoje é triatleta – dá pra imaginar? E pensar que eu, Corinthiana, fico me gabando dos dias em que vou à padaria a pé…
Dos meus avós sei que se instalaram no coração de São Paulo (primeiro no Estado, depois na metrópole), que vieram naquela primeira “leva” de italianos – empurrados pela falta de oportunidade, pela fome até – desterrados em tempos de guerra… A outra Helenice sabe bem menos sobre a sua genealogia, mas arrisco dizer que tudo também deve ter se dado de forma bem parecida…
De toda maneira, acho curioso sermos “xarás completas”! Ainda mais neste mundão! E olha que não somos Elenices comuns, àquelas – com E, e do tipo sem H! Ao contrário! Somos Helenices Schiavons, com todos os “agás” de que temos direito! – para o horror de quem precisa escrever nossos nomes!
Essa coincidência de sobrenomes nos aproximou da nossa italianidade. Mas tem mais… Em comum, há também o primeiro nome… Pense só: “Se ter uma Helenice Schiavon já é duro de aguentar, imagine duas!
Qual a chance disso acontecer? E daí decorre a terceira história:
Terceira história
Serei breve, pois esta história me contou certa vez (e há muito tempo o meu pai), e precisei recorrer à internet para obter mais detalhes: houve sim uma Helenice famosa, lá pela década de 30… Bem, não era propriamente uma Helenice, mas, Hellé Nice, uma pilota francesa bem charmosa e diferentona para a época. Em 1934 sobreviveu a um terrível acidente com seu Alfa Romeo (famosa marca de carros italiana) nas pistas do 1º Grande Prêmio da Cidade de São Paulo. “Sua história comoveu o público paulista e, na época, diversas mulheres colocaram o nome de suas filhas de “Hellenice”, em homenagem à corredora.” Nascemos bem depois disso, mas nossas mães (e pais) parecem não ter esquecido… Tá explicado…
Fiquei feliz por conhecer a minha xará… “Le Helenici Schiavon! ”. Finalmente estamos unidas pelo nome, pelo sobrenome e por uma famosa marca de carros italiana!
Helenice Schiavon é designer educacional, especializada em projetos com storytelling e oralidade. Professora, pedagoga e locutora técnica, escreve ensaios sobre italianidade em São Paulo em Pittoresca.
Ouça o podcast Eu, Storyteller com os textos desta coluna aqui.