ITALIANIDADE PAULISTANA – Non dimenticare

Depois de ler as primeiras linhas deste texto você provavelmente vai dizer: “lá vem ela de novo com a velha história de que os italianos são isso, são aquilo outro – e que nós, brasileiros…”

Nem vou contestar, porque é isso mesmo: com frequência romantizo um pouco as coisas – é que, por aqui, a gente meio que se acostumou a criar uma versão mais lírica, poética da realidade (da nossa e da dos outros). Mas calma! Não precisa levar tudo isso muito à sério, porque, no fundo, no fundo, são só as ingênuas experiências de uma paulistana com os seus italianos…

Mas acho que essa você vai gostar de ouvir: acabei de viver uma semana de dois feriados, 21 e 25 de abril. Um brasileiro e outro italiano. Vinte e um de abril foi dia de Tiradentes e, temo dizer, passou batido. Quero dizer, nenhuma festa, raras menções nas redes e mídias. Vinte e cinco foi La Festa della Liberazione, feriado nacional na Itália. Como eu sei desse feriado? Bem, trabalho com italianos, lembra?

Mas a questão que trago para este texto não é a alegria de ter vivido uma semana cheia de feriados. A questão aqui é bem outra e isso aprendi com “os meus italianos”: há datas a serem celebradas, comemoradas até – seja porque precisam ser lembradas ou jamais esquecidas, ou as duas coisas. Um feriado como esse do dia 25 de abril na Itália é para ser lembrado e jamais esquecido. É um dia de festa, dia de celebrar os 80 anos da libertação da Itália, mas, sobretudo, é um dia para se render no espírito e na alma: é o dia para se lembrar da liberação da Itália da ocupação nazista e da ditadura fascista. É para jamais esquecer do nazifascismo.

Com “os meus italianos” aprendi a lembrar e a jamais esquecer algumas datas, como a Shoah e o ‘’Maggio dei libri’’, Il Giorno della memoria… Confesso: conviver com os meus italianos me fez enxergar os “feriados” de forma diferente e me fez questionar a maneira como o brasileiro enxerga os seus.

Pense comigo: Tiradentes, o Joaquim José da Silva Xavier, morreu neste 21 de abril, há mais de 200 anos. Tempo demais para se lembrar de alguém que não foi herói nem no seu tempo. Ao contrário, esquecido, foi transformado em mártir, hoje “lembrado” apenas como um feriado. Uma história que seria de extremo mau gosto, não fosse sua barbárie: vítima de ato de violência simbólica e pedagógica, ele foi esquartejado em praça pública, o que serviu para amedrontar, chocar, incinerar suas convicções; reduzi-las às cinzas…

Sua história é triste – e deveria nos ensinar algo; por exemplo: o quão horrível foi essa página da história do Brasil. Ele, um iludido, um homem que se deixou levar pelos frágeis ideais republicanos, que deixou inflamar sua indignação contra todo o ouro roubado, contra o colonialismo de sempre, contra todos os saques… Que pensou não estar sozinho nisso e que, ao final, morreu sozinho, escorraçado, abandonado, traído por falsos amigos, delatores covardes, uma porção, um típico exemplo de gente de ética duvidosa, malvada e corrupta.

E o que fazemos com essa história?

Nada, aparentemente. Mas não será nem nunca foi a primeira vez: em pouco mais de 500 anos, o povo dessa nossa terra passou de originário à intruso. De indígena à índio… A natureza, antes saudável e sagrada, se sujou de ferro, bário e níquel. Nesse pequeníssimo tempo da nossa existência, fomos “obedientes” e fizemos a lição de casa: aceitamos a colonização sem polemizar e normalizamos o quanto pudemos a subestimação, a escravidão, a exclusão, a humilhação e a corrupção; só para citar alguns exemplos.

Tudo isso eu pensei em casa nessa sexta, curtindo o duplo feriado na semana. Pensei que essa é somente mais uma história esquecida. Nada de lembrar para não esquecer. Nada de celebrar ou comemorar. É só mais um feriado para prolongar nosso final de semana.

Hoje reencontrei um colega italiano aqui em Sampa. E como ele me parecesse cansado, perguntei:
“Você está bem? Parece cansado. ” Ao que ele me respondeu: “Ah, sim, claro… É que fui dormir muito tarde, você sabe… Comemorando a Liberazione. Dia de festa como poucos. Per non dimenticare.”
Eu concordei, dando um sorrisinho meio bobo.

Mais tarde, pude respirar aliviada: me dei conta de que o dia 22 de abril (o dia do “descobrimento” do Brasil) não é mais feriado há algum tempo por aqui (embora muitos livros didáticos ainda façam menção à data). Me iludo, e me permito pensar que a tiraram do calendário por decreto e coerência. Só que não.

Helenice Schiavon é designer educacional, especializada em projetos com storytelling e oralidade. Professora, pedagoga e locutora técnica, escreve ensaios sobre italianidade em São Paulo em Pittoresca.

Ouça o podcast Eu, Storyteller com os textos desta coluna aqui.

Imagem: Marcello Gennari/Unsplash

Press ESC to close