Autora lança no país o livro finalista do Prêmio Strega “Cara Paz” e fala sobre os impactos da pandemia na Itália
A escritora italiana Lisa Ginzburg esteve no Brasil para lançar o romance Cara Paz. O livro, que foi finalista em 2021 do Prêmio Strega, um dos mais importantes da literatura italiana, narra a história das irmãs Maddalena e Nina, abandonadas pela mãe.
Durante lançamento no Istituto Italiano di Cultura de São Paulo, na última terça-feira (11), a autora conversou com Pittoresca. Sugeriu realizar a entrevista em português, idioma que aprendeu quando morou na Bahia, sendo o seu preferido dentre os que fala, além do nativo: francês, inglês e um pouco de espanhol. “Adoro as possibilidades da língua portuguesa”, disse no bate-papo com o público ao se referir ao termo “maternar” – cujo correspondente não existe em italiano. Sem se dar conta, ela mesma criou um neologismo no evento ao transformar a expressão “dar spoiler” no verbo “spoilizar”. “Não estou ‘spoilizando’ [a história de Cara Paz]”, repetiu, por diversas vezes, ao comentar algum trecho da obra.
Neta da escritora Natalia Ginzburg (1916-1991) e filha do historiador Carlo Ginzburg, Lisa traz as palavras no DNA. Na entrevista a seguir, ela faz um paralelo entre a sua escrita e a da avó, comenta sobre o contexto da literatura italiana atual e os impactos da pandemia nas obras literárias no país e nos italianos. “Existe muita nostalgia do passado”, reflete.
Acompanhe.
Como podemos caracterizar a literatura italiana durante as duas décadas deste século?
Houve um momento muito forte foi quando a literatura italiana falou da realidade, caso de [Roberto] Saviano com Gomorra. Depois houve uma transformação: muitos escritores, nos últimos anos, começaram a falar muito de si mesmos. Veio uma onda de autobiografia, autoficção, como se a realidade não pudesse mais ser contada. O que falta, na minha humilde opinião, é a invenção. Eu gosto de inventar. Falta também, colocar a realidade social nos romances. Isso é difícil, porque a pandemia também não ajudou. É muito difícil entender o que está acontecendo. Faltam romances para falar da Itália como é agora. Não é fácil dizer como ela é agora…
Como é a Itália agora?
Está difícil de entender, porque a pandemia trouxe esta coisa virtual. Tudo está muito virtual. Está difícil entender como é a realidade. Cada um está em sua casa, as amizades, as relações amorosas estão em um momento de “gelo”. Tem muita ansiedade. Falta descrever isso. Mas estão sendo publicados livros muito bons.
[Outro ponto] é a questão política, que mudou. A questão das mulheres é muito grave. [Existe um lado] que é contra as mulheres, há uma violência contínua contra as mulheres, mais do que antes. Falta colocar nos romances como uma situação um pouco frustrada. Existem valores que estão difíceis de colocar na literatura. Mas acho que tem que colocar tudo isso na imaginação mais do que no testemunho político.
Você, que fala muito da importância da “invenção”, para que lado prefere seguir?
Gosto de descrever os laços familiares e o amor. Tem um livro do Sandro Veronese que fez muito sucesso, O Colibri, que traz um esforço de falar do amor. Falta muito isso. [Hoje] existe mais a questão de defender valores culturais, sociais, éticos… [Isso] é bom, mas eu acho a literatura outra coisa. Às vezes, não deve haver a intenção de ficar colado na realidade para fazer uma coisa pela realidade. Às vezes, é melhor inventar um enredo.
Meu tema hoje é a família, os filhos e também o amor. É importante falar de amor. Parece que o amor está desaparecendo de cena. Ninguém fala de amor, ninguém fala de uma visão de paixão da vida. Vejo, neste momento, a Itália um pouco deprimida: parece que não existem sentimentos fortes, emoções. Há muita morte, luto, perda, ausência. Também escrevi um pouco sobre ausência. Mas é bom também pensar sobre o enfrentamento das pessoas, das relações verdadeiras.
O livro “Cara Paz” aborda a relação entre duas irmãs. Ele foi escrito em um contexto pré-pandemia. Como foi?
Escrevi e foi lançado [na Itália] antes da pandemia. Fiz muitos eventos [de lançamento] virtuais, mas consegui fazer também alguns presenciais. Morava em Paris [naquela época] e estava com muitas saudades da Itália, querendo voltar. A pandemia me ajudou a voltar para o meu país. Voltei e fiquei feliz com a minha decisão. Além deste lado biográfico [que a obra trouxe], queria contar esta relação entre irmãs, tão densa, tão difícil, tão viva.
[No livro] existe sempre uma imagem da “outra mulher”, esta questão de confronto, que não é rivalidade. Na história que inventei não tem competição, porque a situação é muito difícil, elas [as personagens Maddalena e Nina] são constringidas a ser solidárias, não têm atenção dos pais. É uma paz obrigatória, mas com muitas tensões. Queria contar esta coisa: da família como um lugar de tensões, mas de muito amor.
Inventei uma história muito estranha, onde não tem estrutura [familiar], não tem união [familiar], não tem aquela casa de cada dia, onde todos tomam o café juntos. Mas tem muito amor mesmo na distância, na ausência, na raiva.
Seu próximo livro é sobre o amor. Quais as mudanças entre as duas obras no contexto pandêmico?
[Meu novo livro] vai ser publicado em outubro, na Itália. Em italiano, o título é Una Piuma Nascosta, ou Uma Pluma Escondida. É um livro sobre o amor, [onde] falo de novo sobre ser filho, pois é o meu tema. Não acredito que um escritor possa mudar de tema, já que cada um tem a sua obsessão. O que mudou? A questão espacial, que é menor: [a história se passa] em uma cidade. Não tem esta questão de abordar vários lugares.
Sinto que a geografia mudou. Foi bom voltar para o Brasil [neste momento], mas sinto que o viajar, o deslocar-se mudou muito agora. É como se o mundo estivesse menor e maior ao mesmo tempo. Queria descrever uma história que acontecesse em um espaço muito restrito. Não posso falar muito, porque o livro ainda vai sair.
Você é neta de Natalia Ginzburg, um dos principais nomes da literatura italiana do século 20. Poderia fazer um paralelo entre vocês duas?
A questão do estilo [literário entre nós] não tem nada a ver. Admiro muito minha avó como escritora. Ela teve uma visão muito clara, muito direta da realidade. Viveu momentos muito duros do contexto italiano – não falo da vida privada. Conheceu a capacidade de ficar no meio das coisas, como acontece nas fases que são duras. Herdei [dela] o olhar humano, de ficar atenta à psicologia dos outros. Ela reparava muito nos outros. Eu e ela ficávamos horas falando sobre as pessoas: o que fez, como era, como vai ser.
Um escritor, na minha visão, tem que ter curiosidade pelos demais. Um escritor que não tem curiosidade pela humanidade, não tem muito sobre o que escrever. Mesmo após a pandemia, que foi um período muito fechado, continuo muito curiosa pela vida dos outros. Espero envelhecer assim. Minha avó envelheceu assim.
Como enxerga a italianidade contemporânea?
Vejo os italianos neste momento muito fechados, muito ansiosos, medrosos. Existe [na Itália] muita nostalgia do passado. Falta mais vida. Um ponto positivo, após a pandemia, é que existe muita solidariedade, menos competição. Começaram a criar mais redes entre os similares.
Serviço:
Cara Paz
(Editora Nós)
O delicado e belo romance Cara paz, de Lisa Ginzburg, magistralmente traduzido por Francesca Cricelli, retrata a intensidade dos laços afetivos que unem as irmãs Nina e Maddalena, duas crianças italianas crescidas num contexto familiar de deriva emocional. Após terem sido abandonadas pela mãe, Gloria, figura livre, fascinante e à frente do seu tempo numa Itália regida por valores conservadores, o pai das meninas, Seba, incapaz de dar conta do abandono da esposa e da criação das filhas, contrata uma jovem mulher francesa, Mylène, como cuidadora afetiva e educacional delas. Com a entrada em cena de mais uma mulher, a narrativa se concentra na perspectiva de resiliência e fortaleza das protagonistas dos acontecimentos desta história
Ficha Técnica
ISBN: 9788569020684
Edição: Primeira
Ano: 2023
formato: 14x21cm
Encadernação: Brochura
Páginas: 256
Tradução: Francesca Cricelli
Imagens: Bruna Pittoresca