ITALIANIDADE PAULISTANA – Si non moriamo


Era bem finalzinho de tarde. Batia um vento forte e descia uma chuvinha fina e insistente. Na parada de ônibus, o painel de avisos indicava que o próximo coletivo passaria em 15 minutos. “Tudo bem”, pensei. “Daqui até Ferrara dá menos que meia hora – tempo de chegar lá, comer uma pizza com o pessoal e voltar”.

Eu não contava, é claro, com o atraso do coletivo… Quando vi, já estava começando a anoitecer. Foi quando o transporte chegou. Subi imediatamente, esbaforida e entediada… Sentei-me num dos bancos disponíveis, acomodei minha bolsa e o guarda-chuva e me encostei na janelinha – tenho o hábito de ocupar esse lugar sempre que posso.

Relaxei. Só depois de um tempo é que me passou pela cabeça que eu pudesse ter pego o ônibus errado. Será…? Na ânsia de me livrar da chuva e do frio (e também de não me atrasar para o compromisso e a pizza), não conferi se o letreiro do veículo coincidia com o “meu destino” – e me desculpe se as aspas são intencionais, óbvias e infantis…

Restava apenas conferir as informações com o motorista, que depois descobriria ser “a” motorista. Não foi muito fácil sair do meu lugar e chegar até ela: as curvas eram muitas e o corredor estreito, longo e, a essa hora, já completamente escuro. Com muito custo fiz o trajeto. Uma porta de vidro nos separava: de um lado, o meu medo de, ao se confirmar que meu destino era outro que não aquele, eu pudesse ser jogada do ônibus e no meio do nada. Do outro lado, o heroísmo dela, já que, com bravura, ela nos conduzia por aquela estrada tortuosa e fria.

No meio de uma curva, toquei a maçaneta e empurrei a porta. Me desequilibrei um pouco, mas falei serenamente, como quem só quisesse tirar uma dúvida, nada demais… Tudo estava planejado: no trajeto do meu banco ao compartimento da motorista, tinha pensado na maior obviedade que sei sobre italianos: o quanto são diretos e objetivos; ainda mais quando estão ocupados. E ela, a motorista, certamente assim estava, tendo em vista, principalmente, a escuridão da estrada e o número de curvas que se sucediam e se sucediam… Então, sem enrolação, num fôlego só, dei meu boa noite – sem qualquer pedido de desculpas por tê-la interrompido em tão importante missão (imaginei que isso a tiraria do sério) – e arrematei, sem perda de tempo, que tinha uma dúvida bem basiquinha mesmo – e só perguntei:

“Ma… quest’autobus si ferma a Ferrara?”

A resposta veio monossilábica: “si”.

Agradeci, pois se tem uma coisa que gosto é de ser educada, principalmente quando estou longe de casa. Fechei a porta e faltou um nada para que eu levasse comigo a maçaneta e desabasse no colo de uma senhora ali, no banco da frente…

Me recompus, mas o caminho de volta ao meu lugar não foi fácil: o corredor estava ainda mais escuro – sem esquecer das curvas! Quando finalmente cheguei ao meu lugar, apressei a me sentar. Olhei o relógio do celular e já tinham se passado 15 minutos desde a nossa saída.

“Pelos meus cálculos, mais uns 10 minutos e chegamos”, pensei.

O tempo passou e passou: mais 15 minutos e nada! O ônibus foi ficando cada vez mais vazio, as pessoas foram descendo, chegando ao seu destino. Um pensamento voltou a me incomodar… Já me imaginava chegando em Ferrara e encontrar a pizzaria fechada. Os amigos teriam desistido de mim… E eu, com o celular descarregando, procurando um hotel para passar a noite; certamente porque, àquela hora, não encontraria ônibus de volta…

O tempo continuava a passar e a dúvida virou pavor: “e se meu destino não fosse aquele?” E se, de repente, a motorista me dissesse que não, o ônibus não ia para Ferrara… Que ela tinha mudado de ideia, ou que eu tinha entendido errado… Me imaginei jogada no meio do nada, na estrada úmida e fria… Fantasiei na minha cabeça uma cena em que eu caminhava no escuro, na beira da estrada, entortando os pés no cascalho, empunhando o guarda-chuva na altura do peito, obstinada a me defender do vento – não mais da chuva. O celular indicando 2% de bateria…

Então, tomei coragem: atravessaria o corredor do coletivo mais uma vez, abriria a porta que dava ao cubículo da motorista, olharia nos seus olhos e pediria satisfações a ela – que, a essa altura, estaria mais para vilã do que heroína. E então lhe faria, objetivamente e sem enrolação, mais uma vez a pergunta: “ a senhora está de brincadeira comigo”?

Fiz isso. Só que, claro, mudei a pergunta:

“Lei è sicura che quest’autobus va a Ferrara?”

A resposta não veio monossilábica dessa vez, pois a motorista respondeu, após uma brevíssima pausa durante a qual pode me olhar de cima a baixo:

“… Si non moriamo…”

Esse episódio me fez pensar que talvez eu tenha descoberto outra subjetividade sobre os italiani doc: o humor (mas isso é algo que ainda devo confirmar… O melhor de tudo é que, meus temores, felizmente, mostraram-se infundados: encontrei os amigos, comemos a pizza e não perdi o ônibus da volta.
Aliás, detalhe importante: sobrevivemos e a motorista era a mesma.

Helenice Schiavon é designer educacional, especializada em projetos com storytelling e oralidade. Professora, pedagoga e locutora técnica, escreve ensaios quinzenais sobre italianidade em São Paulo em Pittoresca.

Ouça o podcast Eu, Storyteller com os textos desta coluna aqui.

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