ITALIANIDADE PAULISTANA – Italianidade é eco

Sem medo de errar, posso dizer que esta história é exemplo de como, tantas vezes, a italianidade se materializa em São Paulo. Afinal, esta narrativa é o relato de um casal brasileiro, paulista e de ascendência italiana que, pensando no futuro dos filhos herdeiros, decidiu se aventurar e abrir uma empresa familiar, um restaurante com receitas tipicamente italianas na maior cidade da América Latina.

Eliana, a mãe, conta a história. Ela relembra que foi no final do Ensino médio que Ricardo, o filho do meio, começou a se interessar por gastronomia. Slowfood, mais especificamente. Ela detalha como a presença da nonna marcou a infância dos filhos e de como esse território afetivo e gastronômico ganhou lugar na vida de todos. Tanto é que Ricardo, que desde cedo se interessava pelas coisas da cozinha, decidiu se especializar nisso na Itália.

Ela não me contou muito a respeito dessa etapa, quero dizer, das energias envolvidas nessa escolha, mas, convenhamos, esta é uma história que valeria a pena ser contada. Afinal, a decisão de permitir que o filho Ricardo – não o caçula, não o mais velho – fosse estudar a quase dez mil quilômetros longe de casa, deve ter feito bater os corações de toda aquela gente…

Há 150 anos tudo teria sido muito, muito diferente… A gente sabe e disso poderia falar melhor a nonna… Hoje, porém e felizmente, já se pode levar os sonhos dos filhos para toda parte do mundo, e realizá-los sem medo. É bom pensar que os jovens de hoje (ainda) estão livres e seguros para ir (de lá para cá e de cá para lá), seja para estudar ou trabalhar. Ainda…

Acho que também é por isso que fica tão bonito ouvir a mãe falar das massas, da frescura das carnes e dos molhos, de tudo aquilo que é artesanalmente preparado no restaurante da família… Do cuidado com as refeições e de como estão aprendendo a se profissionalizar na atividade… De como os pais escolheram com atenção o local do restaurante, visto que queriam muito um lugar que fosse seguro aos “meninos” – afinal, estamos em São Paulo, eu deduzo. É contagiante ouvi-la dizer que se orgulha de ver os filhos trabalhando juntos, cada qual no seu melhor talento; embora também relate o quanto é difícil lidar com pessoas, mesmo quando se está em família.

Tudo o que ela fala – e da forma como ela fala – traz o lastro da italianidade, da memória… Soa como uma oportunidade de fazer valer a boa e antiga história. A italianidade se faz de raspas e se aloja nos ocos.

“Os verbos movem os personagens” – ouvi isso outro dia em um curso de ficção. São os verbos que ajudam a entender qualquer enredo e também esse, cujos personagens reúnem três gerações. Só que é preciso atenção: as narrativas de memória (em particular essa, toda carregada de italianidade), exigem que se entrem nas camadas, nos vãos; pois que só neles podem-se ouvir os ecos…

Por esse motivo foi preciso vasculhar as palavras, coletar as raspas, reconhecer a dramaturgia dos personagens e a poética de cada cena desta história; para entender que cada palavra vem preenchida de origem, de saudade, de coragem e de italianidade. Foi preciso disposição para visualizar o que foi materializado pelo tempo e pelos corpos nas cenas… Pela nonna, pelo filho da nonna… Pela esposa e pelos filhos… Tudo se encaixa, entende?

Quantas histórias não se dão deste modo, com tudo se materializando nos corpos, no como e no onde, de tal forma que nem se pode distinguir o que é presente, passado ou futuro? Nada é de graça: tudo é herança que acontece no oco da história:

Pois que é certo que havia a nonna. E que havia o filho da nonna…. Que havia os dias com a nonna, os sabores da casa da nonna. A nonna, sempre a nonna, a nonna de sempre.

Mas chegou o dia em que não havia mais a nonna. E que, então, era só a memória da nonna, a Itália da nonna, a saudade dos pratos da nonna… Foi então que ninguém disse, mas alguém desejou aprender o idioma da nonna, amar de pertinho o país da nonna e, quem sabe, fazer amigos que, possivelmente, também um dia tiveram uma nonna…

Foi preciso pisar no país da nonna, viver no país da nonna, estudar no país da nonna, sentir tudo ainda mais de perto. Por isso decidiram cozinhar como a nonna, quase como se fossem a nonna… Por isso, o restaurante: porque eles sabiam que não eram a nonna, mas queriam viver, ao máximo e para sempre, essa italianidade, resultante da Itália que havia nela.
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Antes de terminar, devo dizer que sobraram mais algumas raspas por aqui, pedacinhos de história… Ficou de fora uma cena linda e complementar, que toca a mim e que comprova uma curiosa sincronia com a italianidade. Explico: o filho do meio e também os outros, passaram bons anos de suas vidas nos corredores de uma escola (italiana) ao lado do restaurante. Eu também. Foi lá que eu os conheci, naquele cenário. Ali ficaram horas, dias, meses e anos aprendendo a amar as coisas da Itália. Ali fizeram bons amigos. Eu também.

Por tudo isso, quando eu os fui visitar pela primeira vez no restaurante, a primeira cena dos meninos atrás do balcão veio como uma emoção e tanto. Vê-los cozinhando em suas túnicas alvíssimas de botões dourados, os chapéus bizantinos na cabeça, misturou-se com a correria, o barulho do pátio e do sinal, com a alegria dos meninos na escola – ainda tão desapercebidos da sincronicidade que os aguardava…

Italianidade é eco.

Helenice Schiavon é designer educacional, especializada em projetos com storytelling e oralidade. Professora, pedagoga e locutora técnica, escreve ensaios sobre italianidade em São Paulo em Pittoresca.

Ouça o podcast Eu, Storyteller com os textos desta coluna aqui.

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