Escrever sobre italianidade paulistana é sempre uma “experiência” para mim. E digo isso entre aspas porque tomo a expressão no seu sentido filosófico, como um momento destinado aos sentidos. Essa experiência é como se eu me deixasse atravessar por algo, agindo como um pirata a cruzar o mar, a saquear navios; vivendo entre a coragem e a incerteza. Há muitos riscos nisso, e um deles é o de “ler” a realidade com lentes acostumadas e teimosas. Em geral, é isso mesmo o que se dá: “não vemos primeiro para depois definir, mas primeiro definimos e então vemos”.
Foi assim naquela primeira semana – embora eu tenha procurado ser, digamos, cautelosa. Era nova no emprego e havia um limite para assumir riscos. Mesmo assim, bati à porta:
“Avanti! ”.
Àquela altura eu sabia bem pouco de italiano, mas, pelo contexto, a expressão sugeria que esse era um comando para eu entrar. Sabendo da praticidade inerente aos italianos, avancei uns passos e coloquei-me diante da mesa. Disse um bom dia e fiz logo o pedido:
“Preciso de uma assinatura de algum jornal brasileiro”.
A resposta também veio rápida:
“Precisa solicitar diretamente ao departamento financeiro da empresa”.
Agradeci e saí sem demora. A coisa toda não levou 30 segundos. Pensei se tratar de apenas mais um exemplo (ou constatação) de quanto podem ser objetivos os “italiani doc”.
Mais tarde, ao término do expediente, desci as escadas. De novo, bati à porta, só que, desta vez, nela estava escrito, claro, Dipartimento Finanziario.
Toc-toc.
Nenhuma resposta. Insisti: toc-toc-toc.
Silêncio… O que fazer? Dispararia um “toc-toc-toc-toc” desta vez? Certamente não! Seria paulista, paulistano, brasileiro demais…
Resolvi dar meia volta… “Quem sabe amanhã…”
Mal me virei e dei o primeiro passo, ouvi uma voz masculina atrás de mim que disse:
“Avanti!”
A expressão já era familiar – eu a ouvira, antes naquele mesmo dia. Só que agora, pelo tom de voz daquele homem, me veio ao mesmo tempo uma certeza e uma dúvida:
De certeza eu tinha que aquele era o chefe! – E olha, ele não me parecia nada simpático… Seu tom de voz era firme, impaciente, irritante, autoritário… Também pairou na minha cabeça uma dúvida: de que “avanti” pudesse ser algum falso cognato e que, desta vez, era para eu “sumir dali o mais rápido possível, dar passagem, desaparecer, ir adiante, para bem longe de tudo e todos! ” Confesso que a minha motivação inicial já me parecia, àquela altura, tão descabida e ridícula… Considerei que a coisa mais certa a fazer era desistir, ainda mais que as minhas pernas bambeavam e o meu coração acelerava. Só que, no íntimo, eu sabia que precisava resistir, e que aquela seria a minha derradeira chance de fazer o tal pedido de jornal.
Então, bravamente, respirei fundo e abri a porta. Não tive coragem de entrar e parei ali mesmo, de onde disparei uma frase inteirinha; sem dizer nem bom dia, nem meu nome (claro, julguei-os irrelevantes para o momento). Assim:
“Gostaria de saber se seria possível contratar a assinatura de algum jornal brasileiro. Seria de muita utilidade”.
O homem estava sentado diante de uma grande mesa e respondeu, sem ao menos levantar a cabeça:
“No!”
E arrematou: “Assim que sair, feche a porta”.
Fiz o que ele pediu, sem entender bem, mas com a sensação de que melhor seria se tivesse iniciado aquela conversa dizendo apenas o meu nome.
No dia seguinte, contei o episódio a um colega de trabalho que me confirmou a fama do homem: objetivo, direto, prático, ocupado, impaciente, irredutível e econômico nas palavras. Uma lista de eufemismos! E complementou dizendo que foi um erro eu ir até lá… “Se tivesse me perguntado…” “Bem-vinda ao mundo dos italiani doc” – acrescentou.
Fiquei chocada. No começo, me senti mal por ter ido direto ao tal “Dipartimento”. Teria bastado um e-mail? Ah, mas é claro que não, embora pudesse ter resultado no mesmo…
Iniciei a semana seguinte temendo cruzar meu caminho com o do homem do Departamento.
Foi só lá pelo meio da semana, bem no início do dia, ainda quando subia as escadas, que fui surpreendida por uma voz atrás de mim:
“Está aqui o seu jornal. Oito e quarenta estará na sua mesa, três vezes na semana. Esse é meu mesmo. A partir da semana que vem, trago-o de casa, leio-o e, na sequência, mando entregá-lo a você”.
Peguei o jornal envolto em um saquinho azul. Ia agradecer, mas o homem nem me deu esse tempo. Passou por mim, alcançou o topo da escada e desapareceu no corredor ainda à meia luz. Tive a impressão de que ele subiu os degraus de dois em dois.
Recebi o jornal pontualmente por três anos.
Nunca nos dissemos os nomes.
Helenice Schiavon é designer educacional, especializada em projetos com storytelling e oralidade. Professora, pedagoga e locutora técnica, escreve ensaios quinzenais sobre italianidade em São Paulo em Pittoresca.
Ouça o podcast Eu, Storyteller com os textos desta coluna aqui.