Michel de Montaigne é o criador do ensaio, um gênero espetacular de escrita do qual não procurarei me afastar ao escrever esta coluna. Assim como ele, acho esse tipo de texto perfeito para quem só quer a liberdade de ensaiar ideias; sem se envergonhar de dizer o simples ou ter que voltar atrás.
Não vem ao caso alertar você sobre o quanto, para dizer as coisas, o tal filósofo humanista enviesava o olhar e as ideias sobre as coisas do mundo em que vivia em pleno século XVI. Mas me arrisco a trazer para esta coluna um conceito imaginado por ele: o amor-amizade – uma definição perfeita de que Montaigne se valeu para caracterizar o sentimento que alimentava por um grande amigo levado pela morte precoce. O sentimento de amor-amizade é, para mim, a síntese e o contorno de que preciso para definir a italianidade em São Paulo.
Eu não saberia explicar melhor a expressão usada por Montaigne do que Chico Buarque (escritor e poeta brasileiro) e, por isso, a reproduzo aqui: “muitas vezes, questionado sobre os motivos que tinha para alimentar tão fortemente aquela amizade, Montaigne apenas respondia que gostava dele e ponto.
Quinze anos mais tarde, revendo o que escrevera, Montaigne acrescentou que gostava do grande amigo simplesmente porque ele era ele. Outros quinze anos se passaram e Montaigne fez mais um acréscimo à frase, completando-a definitivamente: gostava do grande amigo apenas porque era ele; e porque eu era eu”(grifos meus).
Como paulistana que sou, arrisco dizer que a italianidade é isso: um sentimento de amor-amizade no estilo de Montaigne. Nós, brasileiros, paulistas e paulistanos gostamos da Itália e ponto! Gostamos dela, porque ela é Ela. E acrescentamos: definitivamente, nós a amamos porque é Ela… E porque, mesmo a amando tanto, sempre somos nós.
É claro que fazem parte desse jogo identitário as questões antropológicas e sociológicas, mas creio que é o amor-amizade que dá a “liga”; que tão bem define a italianidade em São Paulo. Esse é o sentimento-síntese que a Itália provoca na gente.
Por isso – e sem me envergonhar em dizer o simples (ou ter que voltar atrás) – resolvi que esses meus ensaios sobre italianidade deveriam se iniciar por uma investigação (nada científica) sobre o sentimento de italianidade que mora em São Paulo. Para começar, pensei em interrogar pessoas próximas e verificar se e como se encaixa no peito delas esse amor-amizade pela Itália…
Embora pouco científica, essa pesquisa tem método e, por isso, minhas investigações considerarão a possibilidade de ouvir pessoas que tenham ou não vínculos efetivos (de ancestralidade ou de nacionalidade) com a Itália, mas também com aquelas cujas ligações são subjetivas (e afetivas).
Começo por mim – e prometo ser breve: a italianidade que mora em mim tem o mesmo caráter do amor-amizade sentido Montaigne – e, por isso, posso defini-la literalmente como o que me talha. A italianidade que conheço vem das fendas que se abriram mesmo sem querer. Estão na saia preta da avó e no sotaque que teimava em nunca sair, nas histórias apagadas pela guerra e suas tristezas, nas músicas italianas selecionadas ao acaso no aplicativo instalado no celular, nos múltiplos caminhos-destino que me fizeram conhecer mais belezas e territórios na Itália do que no Brasil…
Um amor-amizade que “não pede explicações” – entalhado, esculpido, gravado.
Helenice Schiavon é designer educacional, especializada em projetos com storytelling e oralidade. Professora, pedagoga e locutora técnica, escreve ensaios quinzenais sobre italianidade em São Paulo em Pittoresca.
Imagem de capa: Bruna Galvão